quarta-feira, 9 de março de 2011

(19)RUBEM ALVES FALA DE BULLYING

BULLYING


BULL apresento
BULLYNG por Rubem Alves

Cronica"Bullying", publicada no jornal "Correio Popular" em 08/05/05
Campinas – SP

Ela se apresentou: “Meu nome é Cleo Fante...” E com um gesto passou-me o seu livro que acabara de ser publicado: Fenômeno Bullying. Estranha a presença de uma palavra inglesa no título. É que não se encontrou uma palavra nossa que diga o que “bullying” quer dizer. “Bully” é o valentão. Um tipo que, valendo-se do seu tamanho, agride e intimida seus colegas, crianças ou adolescentes mais fracos que não sabem se defender. Por vezes o “bullying” não se expressa por meio de murros e tapas. Comumente ele se vale da zombaria e do ridículo: um grupinho concorda em transformar uma pessoa em motivo de chacota por meio de apelidos e, com isso, humilha-a e a exclui do meio social. Uma vítima de “bullying” jamais é convidada para participar das festinhas.
“O “bullying” é diferente das brigas que freqüentemente acontecem entre iguais, provocadas por motivos eventuais. Essas brigas acontecem e acabam. O “bullying”, ao contrário, é contínuo, metódico, persistente, não precisa de razões para acontecer. A vítima, ao se preparar para ir à escola, sabe o que a aguarda. O seu desejo é fugir. Mas não pode. E não há nada que possa ser feito para que o “bullying” não aconteça. Informar os professores só pode agravar a sua situação. Misturado ao medo cresce o ódio, o desejo de vingança e as fantasias de destruir os agressores . Essas fantasias, um dia, poderão se transformar em realidade.
Eu fui vítima de “bullying”. Quando me mudei para o Rio de Janeiro e meu pai me matriculou no Colégio Andrews, que era freqüentado pela elite carioca, fui motivo de zombaria por causa do meu sotaque caipira e a forma como me vestia. A zombaria me enfiou numa grande solidão. Nunca tive amigos. Nunca fui convidado para as festas da “turma”. Sentia-me ridículo. Tinha medo de me aproximar das meninas. O que eu mais desejava era estar longe dos meus colegas. Ir à escola era um sofrimento diário. Sofria em silêncio. E era inútil que eu falasse com os meus pais. Eles nada poderiam fazer. A maioria das vítimas sofre em silêncio.
Assim, antes mesmo de ler fiquei gostando do livro. Disse à Cleo que iria escrever um artigo sobre ele. Mas depois de ler 40 páginas mudei de idéia. Nada do que eu pudesse escrever teria a força das experiências de dor, humilhação e medo das crianças e adolescentes que foram vítimas do sadismo de colegas que ela relata.
Sadismo é uma monstruosa deformação espiritual. O sádico é uma pessoa que sente prazer ao produzir ou contemplar o sofrimento de um outro, prazer que pode, eventualmente, chegar ao ponto do orgasmo. Relata-se que torturadores chegam a ter ejaculações ao ver o torturado contorcendo-se de dor. Freud nunca entendeu as razões do sadismo. É como se o sádico fosse possuído por um demônio... Invocou o “instinto de morte”. Mas isso nada explica. Apenas indica os abismos sinistros da alma humana. Assim, deixei de lado a idéia do artigo. Vou simplesmente transcrever casos que o livro relata.
Primeiro caso: Edimar era um jovem humilde e tímido de 18 anos que vivia na pacata cidade de Taiúva, no estado de São Paulo. Os seus colegas fizeram-no motivo de chacota porque ele era muito gordo. Puseram-lhe os apelidos de “gordo”, “mongolóide”, “elefante-cor-de-rosa” e “vinagrão”, por tomar vinagre de maçã todos os dias, no seu esforço para emagrecer. No dia 27 de janeiro de 2003 ele entrou na escola armado e atirou contra seis alunos, uma professora e o zelador, matando-se a seguir. Foi o caminho que encontrou para vingar-se das humilhações sofridas.
Segundo caso: Na cidade de Remanso, na Bahia, Denilton, um adolescente de 17 anos, tímido e introvertido, foi excluído do círculo de colegas da escola. Revoltado com os anos de humilhações a que fora submetido, resolveu por um fim a essa situação. Movido por sentimentos de vingança foi à escola, que estava fechada. Dirigiu-se então à casa do seu agressor principal. Lá chegando chamou-o pelo nome e o matou na porta da casa com um tiro na cabeça. Dirigiu-se então à escola de informática onde estava matriculado, em busca daqueles que lhe haviam roubado a alegria de viver. Atirou em funcionários e alunos, atingindo fatalmente na cabeça uma secretária. Quando tentava recarregar a arma foi imobilizado e detido.
Terceiro caso: Em Patagones, na Argentina, Rafael, um jovem de 15 anos, tímido,com dificuldades de relacionamento e considerado esquisito pelos colegas, foi apelidado de “bobão”. Diziam que ele era de um outro mundo. Certo dia, após a execução do Hino Nacional o garoto dirigiu-se para a sala de aula dizendo: “Hoje vai ser um lindo dia”. De repente começou a atirar contra as paredes, provocando pânico. Em seguida disparou contra pessoas, matando três meninas, um menino e ferindo mais cinco. Finalmente ajoelhou-se em estado de choque e entregou-se à polícia.
Quarto caso: Luis Antônio, um garoto de 11 anos. Sempre gostou de estudar. Mas ao mudar de Natal para Recife algo aconteceu. Não mais queria ir à escola. Por causa do seu sotaque diferente passou a ser objeto da violência de colegas que “não iam com a sua cara”. Batiam-lhe, empurravam-no, davam-lhe murros e chutes – fato que sua professora confirmou. Na manhã do dia fatídico, antes do início das aulas, apanhou de alguns meninos que o ameaçaram com a “hora da saída” – essa é a hora preferida para as violências. Aterrorizado pelas agressões que o esperavam, por volta das dez e meia, saiu correndo da escola e nunca mais foi visto. Um corpo com características semelhantes ao dele, em estado de putrefação, foi conduzido ao IML para perícia. Os resultados da perícia ainda não eram conhecidos por ocasião da publicação do livro.
Não são casos isolados. O “bullying” é um fenômeno universal. Diariamente milhares de crianças e adolescentes o experimentam, sendo marcados na sua auto-imagem e na aprendizagem. Uma criança apavorada não pode aprender.
Não conheço nenhuma teoria pedagógica que leve consideração esse fato como parte do espaço escolar. O que não quer dizer que não exista. Eu mesmo, que escrevo sobre a educação há muitos anos, nunca escrevi uma linha sobre o “bullying”. Há muitas referências ao fenômeno “violência”. Mas a existência de uma rede de intimidações continuadas como parte do espaço escolar, – parece que isso não tem sido objeto da atenção dos educadores. E, no entanto, os seus efeitos são mais importantes do que tudo que possa ser ensinado.
Sofri pensando no sofrimento das crianças e adolescentes. É preciso que as escolas tomem consciência do “bullying” e incluam, nos seus objetivos educacionais, a criação de um espaço de paz. Aprender a paz é mais importante que preparar para o vestibular. Um bom começo seria conversar com professores e alunos sobre esse demônio.

Fenômeno Bullying – Como prevenir a violência nas escolas e educar para a paz, Cleo Fante, VERUS Editora.

Publicado no Correio Popular 08/05/2005

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